Após o que pode ser considerado o maior escândalo de reputação na história do Cannes Lions, a organização do festival anunciou uma série de regras para o evento do ano que vem. Chamado de 'Padrões Globais de Integridade', o comunicado avisou que será montada uma estrutura para fornecer um 'modelo renovado de responsabilidade, rigor e confiança para a excelência criativa'. Segundo o documento, as empresas que inscreverem trabalhos falsos (ou fantasmas) poderão ser banidas do festival por até três anos. Além disso, a organização reiterou que poderá 'desqualificar ou retirar qualquer inscrição, em qualquer fase da inscrição ou julgamento', caso seja constatado algum tipo de falsidade ideológica. As novas regras foram a solução para dirimir uma série de polêmicas do festival desse ano. Na mais grave, a organização cassou o Grand Prix da categoria Creative Data, vencido pelo case 'Efficient Way to Pay', inscrito pela agência DM9 para a Consul. Isso porque o vídeocase de 'Efficient Way to Pay' exibido aos jurados mostrava trechos alterados de uma reportagem da CNN Brasil e de uma palestra do TED Talks. A matéria da CNN, por exemplo, nunca existiu como mostrada na inscrição para o festival. No imbróglio, Icaro Dorio, chefe de criação e copresidente da agência, foi desligado da empresa - que também perdeu a conta publicitária da marca. O site britânico The Drum chegou a publicar uma entrevista com Ndeye Diagne, diretora da Kantar França, sobre o caso. Na reportagem, a executiva conta que o case 'foi unânime' e que analisou cerca de 400 inscrições em um período de 60 horas - o que dificultaria a percepção em certas adulterações. Cases questionados Além da cassação do GP, a DM9 ainda perdeu outros 11 troféus ao retirar as inscrições das campanhas 'Plastic Blood', criado para a OKA Biotech, e 'Gold = Death', feito para a Urihi Yanomami. 'Plastic Blood' havia sido o case brasileiro mais premiado do ano no evento, com oito leões. Outros cases brasileiros premiados também foram questionados, principalmente por exibir números que não eram condizentes com a realidade. Um dos exemplos é a ação 'Followers Store', criado pela agência Le Pub para a New Balance, e que ficou com três troféus. Um dos resultados do vídeocase aponta que foram vendidas 45 mil camisas do time no dia da iniciativa de marketing. A marca respondeu que nunca aprovou a inscrição da peça em Cannes. Ontem, Felipe Cury, copresidente e chefe da área criativo da agência, também foi demitido. Em outro caso, a Africa Creative admitiu que inflou os números de uma campanha que realizou para a Brahma e a startup de moradia Housi durante o Carnaval - a ação foi vencedora de um leão de Ouro na categoria Brand Experience. Outras campanhas premiadas neste ano também estão sob suspeita - houve até a criação de um documento apócrifo para apontar distorções nas campanhas. Um dos cases mais questionados é a ação 'Lucky Yatra', criada pela FCB India para Railway Service, que levou o Grand Prix de PR e outros oito leões neste ano. Momento de reconstruçãoPara muitos, é o momento das agências (e anunciantes) reverem algumas práticas relativamente comuns no mercado publicitário, como a criação de iniciativas específicas para prêmios, maquiagens de números dos resultados das campanhas e superproduções de vídeocases. Para Marcia Esteves, presidente da Abap (associação que une atores do ecossistema publicitário, em especial das agências) e CEO da Lew'Lara\TBWA, é o momento de 'enfrentar conversas difíceis com transparência'. Com o título 'A publicidade brasileira é maior do que as últimas manchetes', a executiva publicou, nesta semana, um artigo no jornal especializado Meio & Mensagem que aponta fragilidades (e caminhos) para as empresas saírem mais fortes deste momento. 'Assumir responsabilidades é mais poderoso do que apontar culpados. Precisamos reconhecer que críticas não construtivas fragilizam não apenas relações, mas o mercado como um todo. Estamos nos autossabotando em um ambiente cada vez mais competitivo, marcado por disputas predatórias, visão de curto prazo e práticas questionáveis. Em vez disso, por que não unimos forças para buscar soluções coletivas, repensando o que precisa - e pode - ser melhorado por todos nós?', escreveu. As novas regras de CannesDepois de todo o escândalo, a organização do festival havia afirmado que iria introduzir uma série de medidas para garantir que os prêmios 'permanecessem robustos na era do conteúdo sintético, da mídia e da IA'. 'Esses padrões refletem nossa responsabilidade de proteger o valor da criatividade, além de reforçar que a excelência criativa deve ser sinônimo de integridade criativa. A criatividade só tem valor se for crível', afirmou Simon Cook, CEO do festival, em comunicado. As regras para este novo padrão global de integridade foram divididas em cinco tópicos, que vão da autoria real dos cases, permissão dos anunciantes para que as peças sejam inscritas às 'pesadas' punições. A partir de agora, todas as inscrições deverão ser aprovadas pelo líder de negócios da empresa participante e por um profissional de marketing sênior do anunciante - até então, bastava o contato de uma pessoa da marca. As declarações precisarão garantir que todas as submissões, incluindo vídeocases e pranchas com a explicação das iniciativas são 'factualmente precisas'. Além disso, um novo sistema de verificação em duas camadas combinará verificações manuais com análises conduzidas por IA para questionar a veracidade das alegações feitas por cada inscrição. Os jurados também terão acesso a um especialista em dados independente, durante todo o julgamento, para fornecer um escrutínio técnico sobre as alegações de impacto, eficácia da campanha e impacto na mídia. As regras deixam claro que 'empresas que apresentarem intencionalmente trabalhos falsos poderão ser banidas da participação do evento por até três anos'. Mais uma ameaça - agora, real?Não é a primeira vez que o festival tenta banir este tipo de inscrição. Em 2009, a organização anunciou que 'poderia punir os responsáveis' por campanhas fantasmas. Nas regras de pouco mais de 15 anos atrás, as inscrições passaram a ter, obrigatoriamente, aprovação do cliente, veiculação em espaço pago pelo anunciante e exibição dos detalhes como contato, nome e cargo de quem aprovou a campanha. O festival também anunciou que 'se não seguissem tais parâmetros', os prêmios poderiam ser cassados e que poderia banir os envolvidos 'por um período de tempo'. Na época, o processo foi desencadeado depois de uma polêmica que envolveu uma campanha criada pela DM9 para o WWF Brasil. |