Pensador no campo da mídia, tecnologia e cultura, Douglas Rushkoff foi pleno entusiasta da internet nos anos 1990. Agora, além de crítico ao modelo das plataformas da atualidade, ele acredita que o mundo digital acentua a perda da tolerância à ambiguidade e crê que as plataformas de mídia social estão nos tornando 'versões mais extremas de nós mesmos'. 'Podemos tolerar ou até mesmo apreciar a ambiguidade. É a nossa natureza. Isso pode ser até mesmo o nosso superpoder', diz o pensador. A convite da Cadastra, Rushkoff é um dos convidados do Kes Summit 2025, evento que acontece na semana que vem, na Bahia. Por lá, cerca de 250 executivos e executivas também terão debates com nomes como Matt Klein, head de foresight no Reddit, e Anab Jain, futurista e cofundadora da Superflux. A reportagem de UOL Mídia e Marketing conversou, de forma exclusiva, com Rushkoff. Confira: Há quase 15 anos, você sugeriu um 'conjunto de regras' para nos ajudar a sobreviver à era da tecnologia. Elas ainda são válidas ou já sucumbimos às ferramentas? Escrevi um conjunto do que chamei de 'dez mandamentos' para a era digital. Hoje, por serem tecnologias autônomas, esses meros mandamentos não são suficientes para nós, humanos. Precisamos resgatar nossa própria autonomia diante de um mundo programado. Os comandos que ofereci naquela época são ainda mais relevantes hoje em dia. Quando publiquei o livro Programe ou Seja Programado, as pessoas ainda não entendiam que a tecnologia caminharia nessa direção. Elas entendiam apenas que os computadores eram importantes e que as redes sociais faziam seus filhos agirem de forma estranha. Não fazia sentido, ainda, entender que estamos interagindo com máquinas que mudam suas táticas com base no que funciona e que desenvolvem novas técnicas por conta própria. Esse é o conceito central do meu trabalho. Agora que estamos vendo as ferramentas de inteligência artificial mais de perto, as pessoas estão prontas para conceber a vida em um cenário tecnológico que pode ser programado no início, mas se adapta e se modifica no futuro. Os brasileiros adoram o WhatsApp: quase 150 milhões de usuários usam o app todos os meses. Mas, de uma ferramenta de mensagens instantâneas, ele se tornou uma 'máquina' de respostas imediatas. Isso nos condicionou a reagir em vez de refletir. Como devemos agir para incentivar as pessoas a refletir mais antes de pressionar a tecla enter? É difícil 'encorajar' as pessoas a fazerem algo. Uma vez que assumimos esse papel, nos tornamos os manipuladores. Um dos 'mandamentos' do livro ao qual me refiro acima é: 'Não esteja sempre ligado'. Descobri que a melhor maneira de ajudar as pessoas a estabelecerem seus limites é tirar um 'Shabat' (um descanso semanal). Explico: confrontados com um mundo cada vez mais complexo e explorador de proprietários de terras e trabalhadores, os israelitas criaram uma regra de que todos deveriam tirar um dia de folga por semana. Isso não era apenas para descansar, mas para isentar a pessoa de produzir ou consumir, comprar ou vender, e simplesmente celebrar o fato de estar viva. Sugeri que as pessoas tentassem tirar um dia de 'folga' das telas. Sei que isso soa ridículo para a maioria das pessoas. Como alguém poderia sobreviver um dia inteiro sem usar telas? Mas, por mais radical ou insano que possa parecer, realmente acredito que a maioria dos humanos poderia sobreviver (e se beneficiar) muito dessa tremenda (e improvável) mudança. Não é muito difícil. A cada dia surgem todos os tipos de novas possibilidades para socializar, sair e se divertir. É mais fácil fazer isso com toda a família e começar quando a criança é pequena, para que ela vivencie isso normalmente. Não é uma privação, mas uma libertação e uma celebração. Ninguém pode distraí-lo das partes importantes da sua vida, mesmo que seja por apenas um dia. Outras coisas que tenho sugerido são que as pessoas se reconectem com a natureza, com o corpo. Que respirem - o que realmente ajuda. Quanto mais pudermos aprimorar nossa resiliência, menos desregulados podemos ser pela tecnologia. Também precisamos treinar nossos amigos e colegas de trabalho para não esperarem respostas imediatas. Aprendi que, quando as pessoas me enviam um e-mail com um problema, muitas vezes, se eu não responder, elas descobrem a solução sozinhas em pouco tempo. O mundo está extremamente polarizado. Você acha que perdemos a oportunidade de pensar de forma ambivalente, de ter duas ideias opostas antes de escolher uma? Estamos perdendo nossa tolerância à ambiguidade. Isso se deve, em parte, ao fato de termos recorrido a essas máquinas em busca de respostas rápidas. Estamos sobrecarregados com escolhas (principalmente em relação ao consumo) e isso também nos leva a querer tomar decisões rápidas. Também se deve ao fato de vivermos com tecnologias binárias e digitais. Tudo é 1 ou 0, sim ou não. As tecnologias digitais são 'quantizadas'. Não há meio-termo. Como um relógio digital, ele oscila de uma coisa para outra. Não é suave e contínuo. Então, nós mesmos nos tornamos menos suaves. Também estamos usando plataformas de mídia social que utilizam algoritmos para nos tornarmos versões mais extremas de nós mesmos. Cada vídeo que assistimos, leva os algoritmos a encontrar versões mais intensas da mesma coisa, para nos envolver mais. Isso poderia ser para algo inofensivo, como nos tornar fãs mais ávidos de um produto, uma série ou um time. Mas também poderia ser projetado para nos tornar fãs mais ávidos de um partido político ou de uma ideologia. Pior, vimos agora como a Rússia e a China usam essas mesmas tecnologias como uma forma de guerra psicológica para minar o discurso cívico em certas nações ocidentais. Vimos até mesmo nossos próprios governos usando essas tecnologias contra nós, a fim de nos fazer ter medo uns dos outros. Ao contrário das tecnologias digitais, que precisam resolver tudo em 1/0, sim ou não, os seres humanos têm a capacidade de sustentar duas ou mais posições ao mesmo tempo. Podemos tolerar ou até mesmo apreciar a ambiguidade. É a nossa natureza. Pode ser até mesmo o nosso superpoder. E é a zona liminar essencial na qual tudo, da consciência ao amor, existe. Você escreveu recentemente que deveríamos 'abraçar' a oscilação e a desestabilização do avanço da IA: que deveríamos vê-la como uma oportunidade, em vez de algo a ser resistido ou reprimido. Qual é a melhor maneira de fazer isso? Devagar. Suavemente. Compassivamente. Acho que talvez precisemos desviar nossa atenção da 'figura' - a imagem na tela, o sujeito, a própria IA - e retornar nossa atenção para o 'fundo' - ou seja, as pessoas, a paisagem, as situações e as instituições que estão sendo impactadas. Se a IA está ameaçando os empregos, precisamos olhar menos para a IA do que para os próprios empregos. A maioria das pessoas não percebe que os empregos são uma invenção recente. Muitas sociedades sequer têm empregos ou salários. Percebo que isso soe radical e insano, mas as pessoas só começaram a trabalhar em empregos, pagos por hora, na Era Industrial. Antes disso, as pessoas trabalhavam para si mesmas. Elas fabricavam coisas e as vendiam no mercado. No final da Idade Média Europeia, as pessoas trabalhavam apenas três dias por semana e eram mais altas do que em qualquer outro momento da história até a década de 1980. Uma vez empregados, ganhavam menos, trabalhavam mais e passavam mais fome. Então, se a IA pudesse tirar nossos empregos, isso seria algo bom? Existe alguma maneira de aceitarmos viver em um mundo onde a IA e os robôs fazem o trabalho? Como podemos justificar deixar uma pessoa comer se ela não tem emprego? E se ao menos pudéssemos abraçar a oportunidade de repensar as instituições que foram criadas por monarcas no século XII, que agiram sem levar em conta nossos melhores interesses e que há muito deixaram a Terra? As tecnologias são melhores em nos ajudar a repensar as coisas do que em realmente fazer qualquer coisa por si mesmas. Essa é a oportunidade aqui. Momentos como este nos dão a chance de repensar como o mundo funciona. É por isso que os governos estão se tornando autoritários e fazendo tudo o que podem para impedir o tipo de florescimento humano que a era digital pode nos oferecer. |