O que mais chama a atenção no novo filme do Quarteto Fantástico lançado essa semana é o impressionante respeito e cuidado em relação ao material original. De todas as diversas adaptações que esses quadrinhos já receberam ao longo de 60 e tantos anos de criação, essa foi a mais fiel ao espírito de Jack Kirby e Stan Lee. Dá para perceber nitidamente que isso foi planejado com muito esmero pelos responsáveis. A intenção em cada detalhe é trazer ao grande público a visão que a dupla de criadores teve ao longo das mais de 100 edições em que trabalharam juntos na construção de todas essas dinâmicas. Você deve ter lido por aí que o Quarteto Fantástico foi a primeira revistinha da Marvel como conhecemos hoje. Deu início a uma nova era dos quadrinhos, com heróis enfrentando situações espetaculares ao mesmo tempo em que levavam vidinhas humanas, demasiadamente humanas. O filme consegue abordar isso de maneira muito forte. Mas uma das melhores coisas dos gibis do Quarteto é justamente o absurdo completo dos perigos que eles precisam enfrentar. A ciência estapafúrdia tantas vezes traduzida de maneira única pela mente criativa de Jack Kirby, as teorias da conspiração vigentes na época convertidas em suspense pueril e debate social, os limites imponderáveis de um espaço sideral como se imaginados por crianças hiperativas. A bizarrice adorável dos quadrinhos, que por acaso são os favoritos na minha coleção, poderia ser facilmente confundida com algum tipo de palhaçada. As encarnações anteriores desses personagens no cinema sempre erraram a mão, ora exagerando na falta de seriedade, ora tentando dar um verniz sério ao que é intrinsecamente ridículo. O tom geral das aventuras da Marvel desde Homem de Ferro de 2008 é de comédia. Mesmo quando não são engraçados, tentam desesperadamente fazer rir. Nesse sentido, Quarteto Fantástico: Primeiros Passos é o filme mais comedido do MCU -sem se tornar sisudo em nenhum momento. Ele celebra aquele universo moldado na estética dos anos 1960 e a cretinice dos vilões caricatos sem jamais cair para ironia ou chacota. A história bota fé no próprio absurdo e no próprio ridículo, e essa atitude leva o telespectador junto para a brincadeira. A partir desse acerto, os outros pontos positivos ficam ainda mais vistosos. A caracterização de todos os personagens principais está muito bem realizada, e faço a seguir alguns apontamentos sobre cada um. Sue Storm é a alma dessa história. Vanessa Kirby é tranquilamente a protagonista mais magnética da Marvel desde Robert Downey Jr. Toda vez que aparece na tela, e ela faz isso com uma frequência acachapante mesmo sob a alcunha de Mulher Invisível, a atriz toma conta de todo o cinema. É uma performance impressionante. Johnny Storm é outro grande acerto, tanto na entrega de Joseph Quinn quanto na construção da personalidade do Tocha Humana -muito mais fiel e interessante que qualquer versão anterior de carne, osso e chamas. E nas fotos não parece tanto, mas no cinema ele está a cara do Theo Becker. O Coisa de Ebon Moss-Bachrach é subaproveitado na trama principal, mas seus poucos momentos de destaque são brilhantes. Não gostei muito do tom monocórdio de voz que o ator escolheu para praticamente todas as cenas, mas acredito que isso tenha a ver com a estratégia de dar uma abordagem mais ponderada ao filme. Para além disso, como fã dos quadrinhos, adorei vê-lo usando as roupitchas que remetem a algumas das melhores edições da fase do Jack Kirby. E também me diverti com o detalhe da barba -ao longo das décadas, se tornou um clichê para os artistas conferirem alguma modificação corporal no personagem. Já ficou mais pedregoso, teve cicatrizes terríveis, usou capacete… Senti como um aceno a essa tradição. O elo mais fraco nesse time de protagonistas é justamente o Reed Richards, que não fui capaz de enxergar direito na atuação de Pedro Pascal. Não sei se é culpa do bigode ou do excesso de exposição do ator em produções das mais variadas nos últimos anos. O roteiro até fazia sentido, mas o que eu via na tela não se conectava muito com o que conheci nos quadrinhos. Pascal é um ator carismático, talvez carismático demais para essa missão. Parece ter se esforçado para modular sua presença de maneiras diferentes das quais estamos acostumados, mas não consegui me conectar. Depois da sessão, fiquei pensando que ele seria um Doutor Estranho perfeito -e talvez Benedict Cumberbatch fosse o Richards definitivo. A Surfista Prateada poderia ter um pouquinho mais de tempo de tela, e a decisão de fazer a personagem mulher foi para ajudar a sublinhar a importância do ponto de vista de Sue Storm dentro da trama. Não sei se era necessário, mas me diverti com o resultado final. Considero Julia Garner a melhor atriz de sua geração. E a performance dela ajuda a dar credibilidade para uma das ideias mais malucas dos quadrinhos! Uma pessoa prateada e pelada em cima de uma prancha de surfe singrando o cosmos no intuito de arranjar planetas por aí para um gigante se alimentar? Isso quase não parece ridículo no filme e em boa parte é por causa da Garner. As primeiras cenas com Galactus ficaram um pouco aquém da minha expectativa, com jeitão de cenário de videogame. Mas a hora em que ele invade Nova Iorque… Fiquei com dor na bochecha por causa do tamanho do sorriso que ficou estampado na minha cara. As proporções bizarras, as interações com os prédios e os heróis, tudo funciona como nos gibis. Legal demais. Em vez de acrescentar camadas aos gibis de Lee e Kirby, o filme apara eventuais arestas para que o máximo de pessoas da audiência contemporânea tenham acesso a visão original desses dois baluartes da cultura popular do último século. De certa maneira, vivemos em um mundo imaginado por eles, e estou feliz que mais gente terá acesso a essa origem secreta a partir de agora. Voltamos a qualquer momento com novas informações. |