Os combustíveis fóssies predominam nas matrizes energéticas das maiores economias do mundo. Eles são os principais responsáveis pelas emissões de GEE (gases de efeito estufa) e pela baixa eficiência nos processos de conversão — fatores que impactam diretamente a matriz energética global. Em 2022, cerca de 82% da energia primária consumida no mundo veio de fontes fósseis, como petróleo, carvão e gás natural, proporção semelhante à registrada desde a década de 1970. No Brasil, embora a geração de energia elétrica dependa principalmente das hidrelétricas, com apoio das fontes intermitentes eólica e solar fotovoltaica, ainda se usa aproximadamente 55% de combustíveis fósseis. E a eficiência também é limitada, já que os processos de conversão seguem padrões semelhantes aos utilizados mundialmente. Apesar de dominarmos a produção de etanol há várias décadas, essa dependência de combustíveis fósseis resulta em emissões significativas de CO2. Em 2023, o setor energético global emitiu cerca de 37,4 bilhões de toneladas de CO2, um nível recorde. Mas há caminhos para mudar esse cenário, como o uso de tecnologias de cogeração de energia. Embora a substituição por fontes renováveis seja um caminho para reduzir o uso dos combustíveis fósseis, aumentar a eficiência dos processos de conversão é outra rota promissora. Principalmente porque as fontes renováveis intermitentes, como solar e eólica, exigem a exploração de elementos raros para a produção de baterias. Por isso, é importante desenvolver soluções capazes de gerar eletricidade de forma contínua. Essa tarefa não é tecnicamente simples. Mas, no Brasil, há uma oportunidade concreta: a recuperação do calor residual em usinas de álcool e açúcar para produzir energia elétrica despachável (aquela produzida sob demanda, ou seja, quando a rede elétrica precisa), 24 horas por dia. Uma alternativa viável com resultados imediatos está na recuperação da energia desperdiçada. É nesse contexto que ganham destaque os Ciclos de Rankine Orgânicos (CRO), uma tecnologia que reaproveita calor residual — como o gerado em processos com biocombustíveis — para gerar trabalho mecânico que pode ser convertdo em energia elétrica. Trata-se de uma tecnologia que funciona de forma semelhante a uma usina a vapor tradicional, mas utiliza fluidos orgânicos em vez de água, permitindo operar com fontes de calor de menor temperatura, como os gases quentes liberados em processos industriais. O potencial de uso dessa tecnologia é expressivo. Na maioria das vezes, uma significativa parcela da energia química dos combustíveis transforma-se em calor lançado no ambiente, sem ser convertida em trabalho útil (como movimentar um veículo). Um imenso desperdício de energia. Hoje, com o avanço dessa tecnologia no Brasil, uma única empresa produtora de etanol e açúcar no Centro-Oeste gera anualmente 4,2 mil GWh (ou 4,2 TWh) de eletricidade por meio de cogeração, durante nove meses ao ano, aproveitando o vapor de suas usinas. As aplicações práticas dos ciclos CRO são amplas. Destacam-se setores industriais com alto consumo térmico, como a produção de açúcar e etanol, biocombustíveis em geral, siderurgia, cimento, petroquímica e papel e celulose. Sempre que houver calor residual em temperatura compatível com os fluidos desses ciclos, há oportunidade de aplicação. Usinas térmicas que utilizam bagaço de cana ou etanol, unidades de biomassa e plantas de resíduos também se mostram promissoras. Apesar do elevado potencial, há desafios à implementação em larga escala. Os custos iniciais de instalação ainda são elevados, especialmente em plantas de pequena ou média escala. Além disso, a viabilidade técnica depende de um bom casamento térmico entre a fonte de calor residual e o ciclo CRO, o que exige projetos específicos. Questões como operação contínua, manutenção especializada e durabilidade dos equipamentos também influenciam na decisão de investimento. Nesse cenário, políticas públicas podem exercer papel decisivo. Linhas de financiamento voltadas à eficiência energética, incentivos fiscais para projetos de recuperação de calor em usinas de biocombustíveis e açúcar, e a valorização da energia recuperada no mercado regulado são instrumentos que podem acelerar a adoção da tecnologia. Os Ciclos de Rankine Orgânicos despontam como tecnologia madura e promissora para esse fim, especialmente em setores industriais intensivos em calor. O avanço nessa direção depende da articulação entre inovação tecnológica, políticas públicas e modelos econômicos que valorizem a energia recuperada e a redução das emissões de GEE. Assim, o aproveitamento de calor residual pode deixar de ser uma oportunidade negligenciada e se tornar um pilar da transição energética sustentável. Colaborou João Pimenta, engenheiro mecânico, doutor em Ciências Aplicadas pelo Laboratoire de Thermodynamique da Université de Liège, Bélgica e Distinguished Lecturer ASHRAE (American Society of Heating, Refrigerating, and Air-Conditioning Engineers). Desde 2002 leciona na Universidade de Brasília, onde coordena o Laboratório de Ar Condicionado e Refrigeração, dentro do Grupo de Energia e Ambiente. |