A convenção democrata começa nesta segunda (19) e é a chance de Kamala Harris ampliar a magra vantagem atual sobre Donald Trump. Na edição de hoje, explico a estratégia 'ousadia & alegria' e também o que pode dar errado.
Fernanda Perrin
Correspondente nos EUA, foi editora-adjunta de Mercado. É mestre em ciência política pela USP.
EDIÇÃO ESPECIAL: KAMALAPALOOZA
Manicure de graça. Braceletes da amizade. Celebridades, alumni do RuPaul’s Drag Race. Plantadores de coqueiros e instrutores de aeróbica por Harris.
Eu não sei muito bem onde habitam e o que comem os adolescentes hoje em dia, mas é a eles que me remete o rebranding da convenção nacional democrata, que começa nesta segunda-feira (19) em Chicago.
Há um certo tom de jovialidade, ousadia & alegria dificilmente imaginável há um mês, quando Joe Biden ainda era o candidato do partido e a maior “piada” democrata era a predileção do presidente por sorvetes.
Cheguei em Chicago no domingo –eu e mais 50 mil pessoas, segundo estimativa do comitê democrata que organiza o evento. Parece muito, mas é bastante crível considerando o trânsito de quase duas horas que encarei do aeroporto até o centro da cidade. Desses, 5.000 são delegados e 15.000 são membros da mídia (não está claro se a organização incluiu aqui a força-tarefa inédita de influenciadoresque mobilizou pela primeira vez neste ano).
As convenções, que servem a rigor para oficializar o candidato de cada partido, haviam perdido muito de sua relevância prática nas últimas décadas. Da impressionante disparada de 16 pontos nas pesquisas de Bill Clinton em 1992, seu impacto foi praticamente nulo em 2020, tanto para Biden quanto para Donald Trump.
Mas 2024 tá aí para fazer a gente questionar tudo que pensava saber sobre eleição.
Faz menos de um mês que Kamala Harris se tornou a candidata presumida democrata do jeito mais nunca-antes-na-história-desse-país possível. Ela não enfrentou as primárias, o tradicional périplo estadual que candidatos percorrem para obter a nomeação do partido. Sua pré-candidatura em 2020 terminou antes da primeira votação.
Sua vice-presidência começou conturbada, com alta rotatividade de assessores e uma desastrosa entrevista sobre imigração. Muitos atribuem a esses problemas sua retração. O cenário começou a mudar com a derrubada do direito constitucional ao aborto pela Suprema Corte em 2022. O tema foi abraçado por Kamala, que buscou torná-lo sua marca.
Mas, no fim do dia, a candidata ainda é uma figura relativamente desconhecida do eleitor. Democratas vão usar a convenção para reapresentá-la ao público e esperam, com isso, alargar a vantagem que as pesquisas recentes têm mostrado sobre Trump.
"Kamala tem se saído melhor que Biden nas pesquisas, e trouxe de volta a corrida para um cenário em que ambos têm 50% de chance de vencer", me disse Kyle Kondik, do Sabato’s Crystal Ball, um dos principais centros de projeção eleitoral dos EUA. "A questão é: ela consegue avançar mais? Ela pode subir ainda mais nas pesquisas? A convenção vai ser uma oportunidade para analisar isso."
Nenhum candidato que estava à frente nos levantamentos a essa altura do campeonato perdeu a eleição no voto popular, ressaltou o cientista político Christopher Wlezien, autor do livro "A Linha do Tempo das Eleições Presidenciais: Como campanhas importam e não importam" e professor da Universidade do Texas em Austin.
“Mas tudo pode acontecer nesta eleição”, completou ele, rindo. Não tá fácil para ninguém mesmo entender onde isso vai dar.
A estratégia da campanha de Kamala é clara: “alegria e esperança”, como projetaram na fachada da Trump Tower em Chicago na noite de domingo. É a tal vibe adolescente, no sentido de ser leve, idealista e, em certa medida, até algo ingênuo, em um contraste com os “esquisitões” Trump e J.D. Vance.
E os protestos pró-Palestina previstos para esta semana vão no coração dessa estratégia. Os manifestantes acusam Biden e Kamala de compactuarem com um genocídio em Gaza, e cobram o partido de interromper o apoio a Israel, adotando por exemplo uma suspensão da venda de armas ao aliado no Oriente Médio.
A primeira marcha acontece nesta segunda; há mais duas previstas para quarta e quinta. O temor da campanha de Kamala é que se repita a história da convenção de 1968, também em Chicago, quando manifestantes contra a Guerra do Vietnã entraram em choque com a polícia. A imagem de caos é tudo o que os democratas não querem agora, quando mais precisam do eleitor moderado e independente.
Neste domingo (18), eu fui numa espécie de aquecimento, um protesto em frente a Trump Tower convocado em defesa do direito ao aborto, mas que na prática tratou muito mais de Palestina.
A convenção começa nesta segunda e vai até quinta. Durante o dia, há reuniões de grupos do partido (mulheres, negros, latinos, jovens, idosos, LGBT etc) no centro de convenções McCormick –o maior da América do Norte, segundo a organização.
A partir das 17h30 no horário local, o foco muda para o United Center, casa dos Chicago Bulls. Ali, a programação consiste em uma sequência de discursos. Nesta segunda, falam o presidente Joe Biden e a primeira-dama, Jill.
Barack e Michelle Obama, e Bill e Hillary Clinton também vão participar, mas ainda não têm data confirmada.
Segunda-feira (19) Tema: "Para o povo" Segundo a organização, a proposta é mostrar "as conquistas e resultados que Biden entregou ao povo, com a vice-presidente Harris ao seu lado". O presidente vai fazer um discurso à noite, assim como a primeira-dama, Jill.
Terça-feira (20) Tema: "Uma visão ousada para o futuro dos EUA" O objetivo da noite será reforçar a estratégia democrata de apresentar Kamala e Walz como o futuro e Trump e Vance, como o passado. O Projeto 2025, uma plataforma conservadora e impopular do qual os republicanos tentam se afastar, deve ser um dos focos.
Quarta-feira (21) Tema: "Uma luta pelas nossas liberdades" A defesa do direito ao aborto deve ser o eixo central da noite, com a campanha democrata aproveitando o passado de Kamala como procuradora para projetá-la como alguém que "lutou pelas liberdades dos americanos". Walz vai fazer o principal discurso da noite.
Quinta-feira (22) Tema: "Pelo nosso futuro" O objetivo será acusar Trump de ser uma ameaça ao país, enquanto Kamala é apresentada não só como a escolha segura, mas como aquela que levará os EUA a uma "era melhor e de mais esperança". O encerramento da noite será feito por Kamala.